A primeira vez que estivera
naquela cidadela escondida da civilização fora há quase sete anos. Eram férias
de verão e ele tinha três meses para aproveitar a natureza e a famosa reserva
vegetal e animal da qual Lorem fazia parte. Em outras palavras, curtir. O que
significava traçar muitas mulheres.
Porém, infelizmente, certa
nativa ofuscou as outras mulheres que poderiam ter passado por ele durante
esses meses. A pele morena, os olhos com a medida certa de doçura e malícia e,
obviamente, o corpo delgado o enfeitiçaram.
Enganar a nativa não havia
sido difícil, apesar de extrovertida, ela era completamente inexperiente em se
tratando de paixão e sexo. Para a sorte de ambos, ele estava mais que disposto
a ensinar os prazeres da carne.
Quem diria que ele encontraria
sua primeira virgem no meio de uma reserva natural? E quem diria que ela ainda
tentaria lhe dar o golpe engravidando? Mas Scott era esperto. Ou se achava.
Assim que Samantha contou-lhe sobre a gravidez, ele tratou de dispensá-la e
entregar a quantia equivalente a um aborto.
Agora, anos após o ocorrido,
lá estava ele em um carro alugado, cruzando a rodovia principal em direção à
Lorem. Não sabia por que resolvera passar por ali novamente, alguma compulsão
por aventura. Ele só acordara na manhã anterior com uma vontade enorme de viajar
até Lorem e atormentar um pouco a pequena Samantha.
Scott gargalhou e correu os
dedos pelos fios louros. A garrafa de cerveja, apoiada no banco do carona logo
foi tomada por ele, num gole generoso. Uma olhada no retrovisor, apenas para
checar se tudo estava normal, e focou os olhos verdes na estrada à frente. Bem
no ponto em que uma figura, coberta por um manto negro, estava parada. O pé,
automaticamente, pressionou o freio e as mãos giraram o volante para a esquerda,
somente o suficiente para não atingir a pessoa.
Entretanto, ele calculou
errado. O carro acertou em cheio o pedestre. O corpo dele girou sobre o capô e
desapareceu, enquanto Scott, dentro do veículo, capotou diversas vezes na
estrada, até parar rente ao tronco de uma árvore.
A garrafa com a bebida
quebrara, assim como os vidros do carro e alguns ossos do corpo do motorista
imprudente.
Scott sentia o sangue
escorrendo testa. Pingando no mesmo ritmo em que a gasolina tocava o asfalto.
A visão começava a anuviar-se,
mas ele teve tempo de ver um manto escuro arrastar-se silenciosamente até sua
janela. A falta de ruídos o fazia escutar nitidamente o coração retumbando como
um desesperado, tentando salvar um corpo entregue à morte.
Então o manto parou.
O frio que Scott sentia
aumentou absurdamente e, a última coisa que ele viu, antes de apagar, foi uma
luz verde o cegando.
...
Escuro.
Gelado.
Solitário.
Ela tinha certeza de que
estava com os olhos abertos, mas, mesmo assim, não conseguia enxergar um palmo
a sua frente. Com os braços esticados, tentou encontrar algo sólido ao redor.
Nada. Não havia uma só parede, ou algo em que pudesse se apoiar.
O vazio era para ser, ao
menos, calmo. Não este. Kahli sabia que havia algo a espreita. Assim como sabia
que algo se aproximava, como a serpente mirando a presa indefesa.
Um passo para trás. Uma pequena
faísca.
As chamas começaram a poucos
metros, a centelha verde tomando conta do que ela acreditava ser o chão, depois
se alastraram ao redor de Kahli. Queimando como o gelo queimava. O frio
cortando seu corpo. O rosto ardendo com as lágrimas que caiam e logo eram
transformadas em pequenos cristais de granizo. As labaredas lambendo sua pele,
a dor sugando os ossos das pernas... dos braços.
Kahli sabia que gritava, a dor
lancinante na garganta lhe indicava isso, entretanto, os ouvidos pareciam
inúteis. Ela não escutava nada. Ou seria sua voz que não funcionava?
Buscando trazer sua fala para
o exterior, Kahli levou as mãos ao pescoço. A força ali exercida machucou o
único pedaço de seu corpo que ainda estava sadio e não adiantou em nada. Então
ela soltou. No mesmo instante, as chamas se fecharam, não restando uma parte que
não estivesse consumida pelo fogo.
Respirar tonara-se impossível.
Ver algo ali era inviável.
Com as palmas viradas para
frente, tentando conter as chamas esverdeadas, ela se concentrou na dor espalhada
pelo corpo. O medo subindo pelos membros e concentrando-se no peito. O frio das
flamas incomuns transformado em fogo. O fogo transmutado em poder. Poder exalando
por seus poros.
De repente, as mãos não
estavam mais doendo. Elas estavam quentes, emitindo uma luz avermelhada e,
inesperadamente, contendo o mal presente nas chamas. E, abandonando o brilho
inibido, elas irradiaram o fulgor vermelho rosé que sufocou o incêndio.
Kahli observou com
estranhamento as mãos, que pareciam faróis, se apagarem aos poucos. A claridade
diminuindo até restar uma pequena espiral em cada palma. Espiral que se
desenrolou em uma energia brilhante e se arrastou por sua pele. Braços. Ombros.
E ela sabia, não precisava enxergar através da blusa destruída, que as duas
linhas brilhantes pararam bem em seu coração. Foi ali que o calor aumentou. Foi
ali que ela sentiu a dor cortar. Foi apenas com essa dor que ela pode escutar
seu grito.
Apertando o centro do tórax,
Kahli despertou.
Só um sonho. Só um sonho.
Respirava em um ritmo
entrecortado e olhava para a janela freneticamente, como se houvesse alguma
coisa lá fora que não fosse o exemplo de bondade.
Assustar-se com qualquer
coisa, ou sonho, nunca fora de seu feitio, entretanto, agora parecia ser sua
realidade. Passou as mãos pelos fios negros, apertando mais os cabelos no rabo
que estava frouxo. Enrolou uma mecha no indicador e pôs-se a torcê-la indiscriminadamente.
É... Ela estava nervosa.
Pousou os olhos escuros na
janela, novamente.
É claro que tinha alguém lá
fora! E o fato confirmou-se ao escutar a parede ser arranhada. O coração pulsou
forte contra as costelas e Kahli engoliu em seco. Adquirindo uma enorme vontade
de desaparecer, ela se apertou à cabeceira da cama e apertou as cobertas entre
os dedos compridos.
O tempo pareceu se arrastar,
enquanto o barulho ficava cada vez mais próximo. Com a vista vidrada, a jovem aguardava
o momento em que, aquilo que esperava do lado de fora, pularia para dentro do
quarto e terminaria o que iniciara na noite anterior.
Talvez seja apenas a árvore em frente à janela.
Assim, contrariando suas
expectativas, quando o vidro da sacada abriu-se e uma enorme massa aterrissou
no piso, ela pulou da cama e correu em sua direção.
O encontro dos dois corpos
trouxe o alívio que, ela acreditava, jamais se acostumaria. Percorrendo as
costas largas, suas mãos passearam pelos músculos definidos e pararam nos
ombros fortes. Sem hesitar, escondeu o rosto no peito coberto por uma fina
camisa e aspirou o cheiro peculiar feito sob medida para ela.
— Você está bem? – Jacob
perguntou, apesar de saber que a resposta, independente do que ela dissesse,
seria não.
— Sim – a voz saiu abafada.
— Acredito – colocou o queixo
na cabeça de Kahli e fechou os braços em torno do corpo frio dela.
— É verdade – insistiu, enquanto
sentia o coração acalmar-se e a respiração se normalizar.
— E eu acredito.
Descendo mais as mãos, Jacob segurou-a
pelas coxas e a ergueu nos braços. Kahli apenas ajeitou melhor a cabeça e se
deixou ser levada de volta para o colchão ao qual ainda estava desacostumada.
— Melhor? – Ouviu Jacob questioná-la,
após ambos se ajeitarem na cama, um de frente para o outro.
— Sim – respondeu, abrindo os
olhos e encontrando os castanhos tão familiares e, ao mesmo tempo, recentes.
— Vou querer saber o que
aconteceu? – Sorriu de lado, quebrando toda a tensão.
— Só um pesadelo. – A cabeça
sacudindo de um lado a outro, não deixou margem para que Jacob insistisse no
assunto. – Como sabia que eu precisava... precisava de você?
Kahli sempre teve o costume de
ser direta, contudo essa determinação acabou pegando Jacob desprevenido e ela
também. Acabara de admitir – e em voz alta – que precisava dele. Mas não era só
isso. O “precisar” englobava o fato de que ela estava balançada pelo cara que a
salvara. Estar com ele se tornara muito mais que a ajuda que Jacob parecia
oferecer de bom grado. Sentir isso, quando nunca sentira, era assustador e surpreendente.
E Kahli queria saber até onde aquele sentimento daria.
— Eu sinto quando precisa de
mim. Simples. – Abriu o sorriso branco que a encantava.
— Não – o contrariou,
esticando a mão para passar sobre os curtos fios de Jacob, uma intimidade que
ela não sabia ter. – Não é simples. Mas por hora basta.
— Você não gosta das respostas
simples, não é? – Fez uma careta, fechando os olhos ao sentir os dedos de Kahli
passeando por sua nuca.
— Não, prefiro as respostas
complexas e difíceis de conseguir.
— O que me lembra... Aquele
não foi o melhor pedido de encontro da sua vida, não é? – Soltou uma risada
curta, sendo seguido por Kahli.
— Considerando que só me
chamaram para sair duas vezes, foi um ótimo pedido.
— Não, não foi.
— Foi ótimo, Jacob. Não sei por
que essa implicância. Você pediu eu aceitei. Ponto. – Terminou, cerrando os
olhos, enfezada. Tudo bem, ele não estava muito seguro quando a chamou, mas se
ela aceitou foi porque realmente queria. Aquela não era como as outras vezes em
que saiu com rapazes apenas para deleite da mãe e de Samantha.
Parecendo ignorar a última
fala de Kahli, Jacob ergueu uma das mãos e escovou uma pequena mecha dos longos
fios negros para longe do rosto dela. Não querendo quebrar aquele contato, deixou-a
palma acariciar a pele do rosto. Os dedos acalorados escorregando pela testa,
maçã do rosto, queixo, até parar, finalmente, no pescoço. Engoliu a onda de
desejo que surgiu. Não era suficiente. Ele queria fazer aquele mesmo caminho,
mas com os lábios. Queria deslizar a língua pela pele delicada do pescoço e
venerá-la com beijos e carícias.
— Aceita sair comigo mais
tarde? – Falou mergulhando nos olhos escuros, lagos imensos e escuros.
Então aquilo era o real pedido
de encontro? Kahli, agora, se arrependeu de não tê-lo permitido fazer a
pergunta mais cedo. Bem melhor que a primeira. Mais calma. Mais direta. Mais
desejosa.
— Sim – enviou-lhe um cálido e
sincero sorriso. Aceito sair com você.
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