— Tia Kahli!
Selena entrou no quarto a todo
vapor. Mesmo com a mãe dando claras instruções para que não acordasse a
madrinha, ela subiu na cama e pulou tanto que, em um dado momento, o corpo de
Kahli começou a quicar junto com ela no colchão.
— Meu Deus, Selena! –
Ignorando o sono que estava sentindo, Kahli sentou-se e puxou as pernas da
menina. Selena caiu deitada. O rosto claro, vermelho pelo esforço e as
gargalhadas ecoando pelo cômodo.
— Você não dorme garotinha?
— Durmo! – Respondeu,
balançando a cabeça e fazendo os cabelos loiros voarem para todas as direções.
— Então por que não está
fazendo isso? – Questionou com um bocejo.
— Já ‘tá tarde! – Remexeu-se
na cama, enquanto escutava um barulho parecido com o de papel sendo amassado. –
Mamãe disse que são dez horas! – Abriu as mãos e as levantou. Os dez dedinhos
balançando como se quisessem mostrar que aquilo era muito.
Dez horas?
Ela nunca dormia até tão
tarde. Podia acordar atrasada para a escola alguns minutos, mas seu relógio
interno despertava, no mais tardar, às oito horas. Bom, pelo visto não era só
ele que andava estranho ultimamente. Seu cérebro também enlouquecera. Os sonhos
da noite anterior haviam sido, no mínimo, perturbadores. Primeiro, o incêndio,
depois, Jacob. O último fora, de longe, o melhor, porém, isso não significava
que a estranheza não se aplicava a ele, também.
— ... aí a mamãe falou que não
era para eu acordar a senhora, mas eu vim mesmo assim. – Selena terminou a fala
com um sorriso levado, obrigando Kahli a acompanha-la, mesmo que não tivesse
entendido mais da metade do que a menina havia dito. Provavelmente desobedecera
a mãe.
— Selena! – Samantha gritou.
Com certeza ela desobedecera a
mãe.
Sam apareceu na porta. Braços
cruzados e uma expressão de poucos amigos, que assumia quando precisava
corrigir a filha.
— O que eu falei sobre acordar
sua madrinha?
— Mãe... – Selena fez um bico
e saiu da cama, fazendo o papel em que estava sentada saltar.
— Não use essa cara de coitada,
sabe que ela não funciona comigo. Vá arrumar seus brinquedos.
A pequena fez cara de quem
iria contestar, mas bastou um olhar da mãe para que saísse correndo porta
afora.
— Essa garota está cada vez
mais difícil – fez uma careta antes de jogar-se no colchão ao lado da amiga.
— Claro. – Kahli concordou. –
Igualzinha a você.
— Deixe de ser engraçadinha,
Kahli. Eu era um doce de criança.
— Era sim. Não entendo por que
minha mãe sempre detestou você.
— O quê? Ela vivia de cara
amarrada! Só desenhei um sorriso na “cara” dela para ver se a deixava mais
feliz. – Comentou com uma expressão indignada.
Kahli revirou os olhos com o
costumeiro “falso drama” que Sam usualmente fazia.
— Já que você está acordada,
pode me ajudar com algumas coisas?
— Sim. Só me deixe trocar de
roupa – apontou para a porta.
— Como se eu não soubesse o
que você tem por debaixo dos panos, não é? Não me diga que fez uma tatuagem!
Em vez de negar, Kahli apenas de
um aceno com a cabeça, não notando o momento certo em que Samantha a deixara
sozinha no quarto. A marca nas costas não contava como tatuagem, ou contava?
Decidida a deixar o assunto
para trás, ficou de pé e começou a arrumar a cama. Enquanto dava palmadas nos
travesseiros para ajeitá-los, sentiu um odor conhecido vindo deles. Agarrou um
e encostou-o no nariz, inspirando profundamente. Chuva, vento, canela.
Uma coisa é sonhar com ele,
outra, completamente diferente, é sentir o cheiro dele nas roupas de cama.
Loucura.
Sacudiu a cabeça e atirou o
travesseiro de volta para o lugar. Habilmente sacudiu as cobertas, tirando as
dobras e jogando o papel que estava sobre elas no chão. Após esticar a cama
milimetricamente, ela deu uma volta ao redor do móvel, arrumando o chão e,
finalmente, encontrando a pequena folha de caderno amassada. Kahli franziu a
testa antes de pegá-la e, quando leu seu conteúdo, levou os dedos ao cabelo
despenteado puxando-o enquanto enrolava as mechas.
“Obrigado por ignorar meu primeiro pedido e
aceitar o segundo. Passo para te pegar hoje, ao meio-dia. Vamos almoçar.
ps.: Espero que o pesadelo não tenha se
repetido depois que saí.”
Não foi um sonho. Não foi um sonho.
Repetiu para si mesma e deu um
sorriso genuíno para o papel que ainda tinha as margens do caderno espiral.
— Não foi só um sonho.
...
— Por favor, diga que você
está feliz por me ajudar a lavar roupas. – Samantha juntou as mãos como se
estivesse orando e usou sua melhor cara de coitada para falar com Kahli.
— Estou feliz por te ajudar a
lavar as roupas – sorriu, jogando um vestido sobre o varal e prendendo-o com
pregadores.
— Certo – rebateu num sotaque
estranho, puxando o “r”. – Como eu sei que você ama trabalhos domésticos, vou
te dar mais um. Preciso que fique com Selena daqui a pouco. Tenho que comprar
algumas coisas que estão faltando aqui em casa.
A expressão feliz de Kahli
caiu levemente, mas ela logo tratou de encobri-la. Porém, não rápido o
suficiente para que Samantha não percebesse e perguntasse se havia algum
problema em seu pedido.
— Não há nada errado.
Ignorando a amiga, Kahli
continuou a estender as roupas, tampando o rosto de Sam no processo. Não
precisava que ela percebesse algo mais inconveniente. Além disso, era só um
encontro... com Jacob. Poderiam remarcar para a próxima semana. E então ficaria
mais cinco dias sem vê-lo por causa do seu trabalho na escola durante o dia e o
dele, na aldeia, durante a noite. Talvez ela estivesse um “pouco” decepcionada.
Decepcionada. Entristecida. Muito
chateada.
Ao estender a última peça,
tomou a bacia entre as mãos e começou a caminhar para dentro de casa. Pelo
menos era o que pretendia, antes de ser parada por uma Samantha bastante irritada.
— Vai me contar o que
aconteceu ou não? – Perguntou arrancando a bacia de Kahli.
— Não foi nada. Só me lembrei
da minha mãe.
— Claro! – Ergueu os braços
para o alto, exasperada, e soltou-os, fazendo um barulho de tapas quando as
mãos bateram nas pernas com força. – Porque a idiota, com todo o respeito, da
Sibila consegue te fazer ir do céu ao inferno em segundos. – Terminou meio
gritando meio sussurrando e com uma careta de dúvida. – Talvez ela faça isso,
mas não dessa forma.
— Samantha eu já saí de casa,
não precisa piorar minha visão sobre a minha mãe.
— Desculpe. Olha, se não quiser
ficar com a Selena, eu posso leva-la. É só que... sabe como ela fica me pedindo
as coisas no supermercado e sabe como me sinto inútil por não ter condições de
comprar o que ela gosta.
Sam terminou sua fala olhando
para o lado e controlando os dutos lacrimais. Ela já passara por muita coisa
para chorar por causa de uma simples ida ao mercado, entretanto, quando o
assunto era sua filha tudo mudava. Ser mãe solteira no final da adolescência já
era ruim sob qualquer circunstância, mas, em Lorem, o ruim poderia ser
multiplicado por dez. Só de pensar no que suportara para ter a filha e no que
estava suportando para cria-la já eram motivos suficientes para sentar-se e
chorar por todo o ano. Não era uma má ideia. Talvez ela chorasse tanto que
inundaria a cidade e a reserva e afogaria todas as pessoas que tanto a desprezaram.
Antes que os pensamentos afundassem
mais, ela sentiu os braços de Kahli a abraçando e as lágrimas escorrendo, o
esforço anterior se mostrando inútil.
— Desculpe – falou,
soltando-se da amiga e secando rapidamente o rosto.
— Pare de bancar a forte! –
Agora, Kahli foi quem tomou a liberdade de enervar-se. – Quer dizer, eu sei que
você é forte, mas, às vezes, precisamos apenas chorar.
— Claro, claro – fungou mais
uma vez. – Essa conversa não é sobre mim, é sobre você e o que está
acontecendo.
Kahli olhou-a por um tempo,
antes de decidir ignorar seu rompante. Era típico de Sam guardar seus problemas
e sufocá-los com os de outros ou com piadas e assuntos engraçadinhos, porém,
ela sabia que nada mais sairia de Samantha naquele dia. A sua cota de admissões
fora esgotada, por isso, apenas por isso, resolveu contar a verdade.
— O Jacob viria me buscar para
almoçarmos juntos hoje.
— Espere, como sabe disso?
Vocês não se viram hoje.
— Nós nos vimos, você que não
nos viu. – Assim que terminou a frase, olhou com uma cara culpada para
Samantha.
— Você está dizendo que dormiu
com um cara debaixo do meu teto e ao lado do quarto da minha filha? – Sam
arregalou os olhos enquanto aumentava gradativamente a voz.
— Talvez – fechou os olhos,
tentando imaginar qual seria a reação da amiga.
— Oh meu Deus! – Com um grito,
se atirou em Kahli, apertando-a em um abraço. – Você encontrou – sorriu
entendedora.
— Encontrei quem?
— O cara! – Samantha olhou
para o rosto de Kahli e sentiu os olhos molhados novamente. Era a segunda vez
em um só dia, parecia que ela estava grávida novamente, com os hormônios em
polvorosa, mas agora ela não ligava. Sem querer, Kahli encontrara a pessoa pela
qual ela procurara durante toda a vida. Estava feliz pela amiga – mais que
feliz, na verdade –, só não entendia por qual razão o espaço no peito havia
aumentado. Não se permitiria sentir inveja de Kahli, antes que o fizesse, bateria
com a cabeça na parede.
— Eu vou ignorar isso,
Samantha – respondeu a amiga, sabendo o que “o cara” significava. – É só o
Jacob.
— Você é muito leiga nesses
assuntos para enxergar, Key. – Sam retrucou, utilizando o antigo apelido que
dera para Kahli. – Por isso, eu vou levar a Sel hoje.
— Não, eu converso com Jacob e
marcamos outro dia. Você vai fazer suas coisas e eu fico com a Selena.
— Kahli...
— Assim como você sabe que eu
sou “leiga” – enfatizou a palavra fazendo aspas com os dedos – nesses assuntos,
sabe que quando eu tomo uma decisão, dificilmente volto atrás.
— Você é uma chata sabia? – Tentou
parecer brava, mas o sorriso não conseguiu ficar escondido. – Você vai remarcar
esse encontro e eu vou te ajudar a escolher a roupa! – Mexeu as sobrancelhas e
fez uma dança estranha, balançando o quadril e girando pelo quintal.
— Sim, mamãe. Agora vá trocar
de roupa para sair que eu termino as roupas. Não se esqueça de pegar algumas
notas na minha carteira.
— Não – o sorriso desapareceu
do rosto de Sam.
— Sim. Agora eu moro com você
e ajudo nas despesas. – Afirmou confiante. – Não se esqueça de comprar algumas
daquelas bolachas que a Sel gosta. – Piscou para a amiga e viu a expressão
mudar para agradecimento. – Vá logo, garota! Parece que está de TPM!
— Isso vai ter troco, Kahli. –
Apontou enquanto entrava em casa. – Aguarde.
...
A cozinha havia se
transformado em um caos. Em sua busca por algo que produzisse um almoço efetivo
para ela e Selena, Kahli abrira todos os armários da despensa, a geladeira e
ainda encontrara algumas coisas dentro do fogão. Cozinhar nunca fora um de seus
passatempos favoritos, mas ela sabia se virar na hora da fome, e, naquele
momento, ela usaria qualquer assunto para preencher sua cabeça e esconder os
pensamentos acerca de Jacob sob o tapete.
Selena estava quieta demais,
brincando com a bendita peteca de papel que Seth fizera para ela na última
sexta-feira. Samantha já devia estar na metade do caminho para Bay City, no
momento. E ela continuava bagunçando a cozinha da amiga. O desenho nas costas
havia começado a coçar. No instante em que decidira não avisar para Jacob que o
encontro teria de ser cancelado, a marca iniciara uma rotina de arrepios que
iam da ponta da imagem até o último risco.
Tudo estava indo de melhor a
pior.
Definitivamente, domingo não
era o seu dia.
— Tem um moço aí fora querendo
falar com a senhora! – Selena chegou à cozinha gritando, a camiseta amarela do
Bob Esponja grudada na pele por conta do suor.
Oh Deus, por favor, que não seja ele.
Kahli olhou para o relógio em
cima da geladeira. Meio-dia em ponto. Se fosse, ele era extremamente preciso.
Secou as mãos na regata que
vestia e olhou para o short curto que estava usando, não estava tão ruim.
Afinal, qual a razão do nervosismo? Ela iria dispensá-lo! Balançou a cabeça e
olhou para Selena que ainda estava no cômodo. Começava a agir como uma criança!
— Vamos lá. – Segurou a
afilhada pelos ombros e a usou como escudo. Samantha a mataria se descobrisse
isso. Mataria e choraria de tanto rir. Não necessariamente nessa ordem.
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